O Coringa
Há três anos atrás
fui agredida dentro de uma instituição que abrigava crianças e jovens em risco em
que eu trabalhava. Estava no exercício da minha função quando tocaram a porta
da entrada, estava eu no terceiro piso da instalação institucional indo levar
as crianças menores de 10 anos para escovar os dentes e deitar. Desci as
escadas e fui até a porta, não havia olho magico, por ser tarde e se tratar de
uma instituição de crianças e jovens, perguntei quem era, me responderam e pela
resposta abri a porta.
Se soubesse que
seria agredida minutos depois pelos familiares de três crianças que estavam
sobre o abrigo da instituição, não teria aberto a porta. Nunca sabemos do perigo
que nos espera.
Porque toco nesta
assunto tanto tempo depois? Bem, ontem foi o julgamento das três mulheres que
me agrediram, não fiz queixas contra elas, mas como a situação envolvia três crianças
que estavam sobre o abrigo do tribunal de menores, o Ministério Publico entrou
com uma ação, e eu fui chamada como testemunha do Ministério Publico.
Minha outra colega
que também foi agredida e foi ameaçada de morte pelos familiares, fez queixa na
policia, entrou com uma ação de indemnização, de ameaça e tentativa de homicídio.
Sempre fui
questionada por não ter feito o mesmo, não sou Teresa de Calcutá, mas quando
apanhei não me preocupei se poderia morrer, já que estava sendo enforcada pela mãe das
crianças, e já quase a desfalecer, me preocupei com o olhar de desespero das
crianças que me acompanharam até ao hall da entrada e que desesperadas e sem reação,
apenas choravam ao me ver apanhando, me preocupei com o trauma que aquilo
poderia causar a elas no futuro, me preocupei com as crianças que foram levadas
pelos seus familiares na qual já havia queixas de maus-tratos.
Olhei para aquelas
pessoas que me batiam e rezava, pedia perdão por elas, pedia perdão se eu havia
falhado no meu papel. Não me senti agredida, apesar de fisicamente estar
estendida no chão, com fissura no maxilar direito, traumatismo craniano, mas
pensei, ainda consegui forças para pensar: elas querem agredir o sistema que
lhes tiraram o direito de ser mãe, de ser família, eu apenas estava no caminho
entre elas e este sistema. Nada vale como desculpas nesta hora, mas não queria
causar mais dor e sofrimento as crianças, achei que o tribunal já estava a
fazer o seu papel, a minha queixa não alterava nada, apenas agravava os fatos
envolta delas, mas ao denunciar o sequestro, achei que já tinha feito a minha
parte.
Nunca chorei por
isso, nunca tive raiva delas, nunca tive no meu coração nenhum rancor ou vontade
de me vingar, nunca tive medo
Ontem me vi numa
situação que não me imaginava, me vi diante delas, tendo que relatar na
presença de três juízes: do Ministério Publico; do Tribunal de Menores; do Crime de Ação
Penal Qualificada, tudo que aconteceu naquela noite fatídica em que quase
morri.
Parece que tudo
veio de novo a minha mente como um filme em que me via apanhando, chorei feito
criança diante daquele tribunal, que mandou que saíssem as agressoras da sala
para que eu pudesse continuar meu depoimento. Tremia e chorava, mal conseguia
falar, muito tranquilamente a juíza se dirigiu a mim e disse: Conceição eu sei
que é difícil você ter que passar por tudo isso novamente, mas é preciso, leve
o tempo que precisar, mas nos conte o que aconteceu.
Relatei tudo entre
lágrimas e soluços engasgados.
Os advogados da
defesa da agressoras, não tinham preparado nada contra mim, porque só se preocuparam
com a acusação da minha amiga, até aquele momento eu não existia para eles, por
isso me senti como um coringa no fim de uma jogada onde a acusação até então
tinham ideias vagas do acontecido, porque a minha colega que entra com a acusação
não tinha presenciado tudo que eu presencie, não tinha visto o sequestro das
crianças e nem tinha sido agredida por um homem que surgiu na porta e que me deu um soco que me deixou no chão, após ter sido informado pelas agressoras que
eu “não era a tal pessoa que eles queriam ‘pegar’.”
Pensei comigo: se
apanhei tanto a ponto de desmaiar sem ter culpa de nada do que elas alegaram, o
que teriam feito elas a minha colega, se ao invés de ser eu, fosse ela que abrisse
a porta?
Continuo a rezar,
rezo pelas crianças que continuam institucionalizada, rezo para que elas
consigam um mundo melhor sem tanta violência.
A sentença ainda não
foi proferida, mas sei através da advogada da minha colega que elas podem
apanhar mais de 12 anos de cadeia, e que depois do meu depoimento pode se
agravar mais ainda a situação delas.
Temo pelas crianças
que crescem em família desestruturadas, de violência, e sinto falta da minha família,
e penso que são poucas as famílias como a minha, que apesar de termos nascido e
crescido em um ambiente de favela, eramos unidos, amigos, afectivos, meus pais
nunca usaram de violência connosco, sempre utilizou o dialogo, acho que falta isso
na sociedade, falta dialogo, falta afeto, falta respeito, falta amor.
Neste 28 de Junho
de 2012, desejo a todos um bom dia.
Lilia Trajano –
nome de poeta de Conceição Sobrinho