Cartas Lisboetas te saúda

Bom dia, boa tarde e boa noite.
Sejam bem-vindos ao meu blog, ele foi criado partindo da ideia de uma amiga sobre a minha escrita.
Tentarei postar alguns momentos descritos por mim como uma carioca que resolveu há 9 anos viver em Lisboa.
Espero não decepciona-los, um abraço e sejam bem-vindos a minha pequena morada.
Lilia Trajano

sábado, 3 de dezembro de 2011

Rocinha, no princípio, era o verbo! Hoje faz-se luz!

16/11/2011

Rocinha, no princípio, era o verbo! Hoje faz-se luz!

Começo com um trecho do poema de Cecília de Meireles:
“Sou poeta.
Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias no vento.”

Nasci na favela da Rocinha, tenho 46 anos, e há 9 anos vivo em Lisboa.

Por de trás da casa onde nasci e me criei ficava o clube SOREG, depois transformada em garagem da TAU, para hoje ser prédios de habitação. Nós ali íamos eu e meus irmãos passear no fim da tarde com minha tia, meu pai, minha mãe ou tirar uma fotografia de família. Era um lugar lindo, com animais que hoje estão em extinção, onde havia grandes árvores com seus frutos doces e que podíamos comer sem correr risco. Tínhamos uma área verde e grande para brincarmos.

Na minha infância início da minha adolescência éramos um grupo bastante numeroso de amigos e unidos para tudo: Beto, André, Ana, Adriana, Laia, Adilson, Katia, Murilo, Sonia, as gémeas: Deise e Denise, Nilcéia: a menina especial do grupo, o seu irmão Eduardo,  e os irmãos Wilson e Serginho, o Edmilson – o Mancha -, alguns foram embora, outros foram chegando e a gente ali, na nossa inocência brincando de muita coisa boa, até a tarde cair e a gente ter que ir para dentro de casa. A fundação não era cercada com muros e podíamos chegar do outro lado da rua 4 brincando.

Eu e minha família vivíamos no Beco do Rato, onde até hoje temos uma casa. Sou de uma família numerosa, seis irmãos, fomos criados juntos, brincando juntos, dentro de casa e no espaço aberto que tínhamos perto da Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem, antiga Fundação Leão XIII. Estudei na Paula Brito, mas eu minha irmã gémea, ficamos lá pouco tempo, e logo fomos transferidas para a escola na Marques de São Vicente: Luís Delfino, depois para a outra escola Christiano Hamann, onde estudei com meu amigo Carlos Costa, crescemos juntos, e aprontamos muito, tudo dentro da alegria, da inocência, na amizade, no samba, poesia.

Com 14 para 15 anos comecei a participar das actividades de teatro na associação de moradores UPMMR, com 16 anos da colonia de férias como monitora, junto com minhas irmãs, Fábio Costa, e Carlos Costa. Foram tempos alegres e penso que ainda de liberdade na Rocinha.

Aos 17 anos eu minhas irmãs (Marisa e Maricea) começamos a trabalhar na escolinha da Rua 2, em regime de mutirão construímos a escolinha, fizemos calçamentos de becos, limpamos a vala. Na escolinha éramos financiado pela UNICEF, até a secretaria de educação se apropriar do espaço e efectivar seus funcionários, bateu uma saudade daquele tempo, da Dona Maria do Teatro e suas canções, do Ailton Rosa que animava a vida da garotada inventado coisas e bailes na matine no clube Monte Carlos, em cima da padaria, ao lado da igreja. Saudades de Paulo Belera, Seu Pedro, Seu Inácio e suas lindas histórias. Maria Helena da UACPS, Oliveira, Martins, Maurício Trajano, Tânia Regina, Dilma, Maria Inês – a xuxo – Padre Cherry, o ex-padre Cristiano, e tanta gente que passou que deixou sua contribuição e os que ainda permanecem lutando.

Foi nessa altura que surgiu as primeiras reuniões clandestinas da formação do Partido dos Trabalhadores, eu e minha irmã, não podíamos votar, mas participavamos de tudo, produzíamos material, fazíamos campanha, colávamos cartazes escondidos.

Aos 18 anos passo a participar mais ativamente da UPMMR, e ao contrario do que tem sido noticiado, a falecida Maria Helena, foi eleita pelos moradores, um grupo de lideranças da Rocinha que se uniram para compor a Chapa 2, porque queríamos ganhar do Zé do Queijo nas eleições, não havia bandidos envolvidos connosco, naquela altura o que estava em jogo era o bem-estar da comunidade. Maria Helena só se tornou amante do Denis depois de tomar posse como presidente, e já no andamento do seu primeiro ano de mandato, que isso fique claro, porque a chapa 2 era composta por pessoas serias e que ao longo dos anos vinha atuando na Rocinha para o seu desenvolvimento urbano, social e cultural, não ganhávamos dinheiro e nem tínhamos a intenção de lucrar com nada, queríamos a melhoria da comunidade.

Fui membro da diretoria na área da cultura e secretária da associação, vivi nesse período muita coisa, e vi muita coisa acontecer. Passei a ser respeitada pelo Denis porque impedi sua entrada na sede da associação, alegando que ali estavam reunidos moradores da Rocinha, não era lugar de bandido, na hora que  agi assim, nem pensei que poderia levar um tiro, agi simplesmente e ele foi embora, e voltou sozinho, desarmado, minutos depois e com um documento que mostrava que era morador da rua 2, perguntando se ele poderia participar da reunião dos moradores, foi a partir deste momento, penso eu, que ele passa a fazer parte da associação, quem viveu aquele momento lembra bem das ameaças que surgiram depois, e muita gente da diretoria ao invés de ficar e enfrentar tudo como sempre havíamos feito, se retiraram da associação, deixando pra trás a presidente sozinha, fiquei com ela, não me arrependo, gostava imenso da Maria Helena, tínhamos divergências politicas, partidárias, mas éramos amigas, brigávamos imenso, mas fiquei ao lado dela, até perceber que o barco iria afundar, avisei-a peguei meu salva-vidas, implorei a ela para vir comigo e fui embora. Ela não quis sair, não queria viver fugindo, ficou e morreu.

Participei da formação do Posto de Saúde da Rua 1, onde fui vacinadora voluntária durante 17 anos, ajudei a construir e a fundar muitos espaços sociais e culturais na Rocinha, como: Centro Comunitário Alegria das Crianças, Centro Comunitário Maria Helena, Centro Social E Aí Como é Que Fica, o grupo cultural Arte Astral, o projecto Redescobrir com Tio Lino. E da criação do Livro Varal de Lembranças – Causos e casos da Rocinha, com Lygia Segala, onde tivemos o prazer de entrevistar pessoas que foram de grande importância para a memória da Rocinha e que hoje já não se encontram entre nós.

Participei ainda da formação da Casa da Cultura da Rocinha, onde fazíamos reuniões na casa do Fábio Costa no início dos anos 90, participaram desse início eu, minha irmã Maricea, Carlos, Fábio, Harold, Jorge (ex-marido de Heloísa) Heloísa, e Ailton Rosa que nos apoiou com os eventos na rua como: concurso miss gay, miss Rocinha, a presença do grupo da Orunmilá da Bahia e a exibição de filmes na Via Ápia, show para os desabrigados da Rocinha. Participei ainda do elenco da primeira Via Sacra da Rocinha, onde o ator falecido Walter fez de Cristo, sob a direcção de Aurélio e produção de Fábio Costa e Marta Pereira.

Tenho orgulho de ter contribuído para o engrandecimento da Rocinha! Naquela altura éramos agentes comunitários voluntários, não tínhamos interesses políticos ou financeiro, queríamos o melhor para Rocinha. Como diz meu amigo Harold Avlis, nós éramos agente comunitário - éramos gente que fazíamos, não liderávamos nada, por isso nunca me considerei líder.

Participei do grupo Resistência Pré Vestibular Para Negros e Carentes da Rocinha que começou na Igreja Metodista e depois foi para o Ciep Airton Sena, onde depois de aluna passei a ajudar na coordenação, passei no vestibular e cursei na PUCRio – Serviço Social, hoje com Mestrado feito em Lisboa.

Digo que sou um pouco de tudo, aprendi artesanato, fotografia, dramaturgia, e não penso em nenhum outro lugar onde eu poderia ter adquirido a formação da vida que tenho hoje se não tivesse nascido e crescido na Rocinha, uma família maravilhosa, que se criou e cresceu na Rocinha com dificuldades, mas com integridade, respeito e amor pelo próximo. E como diz o Zé Luís: Vamos fazer a Primavera das Favelas Cariocas e fazer brotar um jardim de criatividade e inovação em cada uma delas. Eu digo: vamos fazer o sol brilhar eternamente. Essa é a nossa missão.
Paz na Rocinha.

Lilia Trajano – Lisboa 15 de Novembro de 2011.
Escrito por Lilia Trajano às 11h07 AM

2 comentários:

MARTA PEREIRA disse...

OBRIGADA!!! ACABO DE REALIZAR ATRAVÉS DESTE TEXTO UMA VIAGEM AO PASSADO QUE TANTO AMO E TENHO GUARDADO NO MEU CORAÇÃO E COINSCIENTE. GUARDO TAMBÉM COM MUITO CUIDADO UM EXEMPLAR DO LIVRO VARAL DE LEMBRANÇAS... FIZ PARTE DE ALGUNS EVENTOS CITADOS EM SEU TEXTO... COMO A VIA SAGRA NA ROCINHA... TRABALHEI COM O GRANDE AMIGO FÁBIO COSTA NA PRODUÇÃO DO EVENTO. MAIS UMA VEZ OBRIGADA POR PODER INTERAGIR COM VC! APESAR DA DISTÂNCIA NUNCA ME SENTI TÃO PERTO DE VC LILIA. BJO NO CORAÇÃO.

Lilia disse...

Obrigada Martinha,ao te ler reli o que escrevi, corrigi dados que você acrescenta e me comovo com tua escrita. A distancia é uma palavra que vagueia no tempo, pois estamos sempre onde desejamos estar, por vezes fisicamente nao chegamos lá, mas nosso coração nos aproxima sempre, beijos Lilia Trajano